quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Memória

Quando nos beijamos pela primeira vez, eu pensei que estava cometendo um crime contra ela. Me desculpei. Clarisse sorriu-me abaixando a cabeça e num relance deu-me outro beijo. Éramos crianças, como diziam? Passei a freqüentar sua casa e a brincar em seu quintal. Passei a almoçar em sua casa e acompanhá-la até a escola, não tão longe da minha. Passei a amá-la.
Não havia muito o que comemorar por aqui, mas inventaram uma festa que atraía gente das cidades grandes. Era minha chance de conhecer alguém que me mandasse livros. No meio de um acorde de Beatles, seus cabelos, loiros, luziram. Glória não sabia, mas ela me salvaria de Clarisse por uma noite. Completamente sem rumo, caminhei até ela me esquecendo do show. Glória se vestia de azul, lindamente, e tinha uns olhos verdes que se guardaram nos verdes campos de minha memória. Glória. Glória, minha memória.
Disse meu nome a ela como Clarisse me contou o dela, sem sequer uma pergunta. Perguntei de onde ela era, mas a resposta era muito óbvia, já que em minha cidade todos se conheciam. Todos? Nunca havia visto Clarisse antes de uma tarde em frente à biblioteca. Ou talvez a vira, mas sem meus olhos de apaixonado. Disse logo o que queria, eu estava meio bêbado. Glória sorriu e disse que mal me conhecia e não poderia ficar de conversa assim. Eu olhei-a estranhamente e toquei sua mão. Glória tinha dezessete anos. Levei-a daquele local pela mão, tal qual a cantava o suposto John Lennon naquela noite. Sim!, Glória seria minha.
Sem qualquer sensação de tato, toquei-a infinitas vezes. E sua pele doce dissolveu-se na minha. Era a primeira vez que via uma mulher nua. Era a primeira vez que eu me encontrava com outra mulher que não fosse Clarisse. Glória nunca me enviou livros. Nunca mais a vi na cidade. Nem mesmo seu nome até um tempo me lembrava. Aliás, foi a própria Clarisse quem me trouxe Glória à mente. Clarisse não presta, ela quer me humilhar para me ter.
Em sua última carta, Clarisse me dizia que meu cheiro estava no dela e que em suas noites só havia eu. Diga-me agora: como não amar essa mulher?! Como não amar a mulher que num abraço recolhe meus medos? Que num abraço, numa carícia maior, leva meu desejo deixando mais desejo?
Glória nunca soube, mas eu nunca disse seu nome naquela noite. Meu coração gritava "Clarisse, Clarisse". Eu estava louco. Eu já amava Clarisse. E já a odiava. Amo e odeio Clarisse há doze anos e não sei o que fazer quanto a isso. Ela está longe, longe, mas seu corpo aquece meu corpo na minha solidão. Clarisse não é um troféu, não é um amuleto, não é uma jóia. Clarisse é meu amor.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Futuros Incertos

Lera para ela mais um de seus contos. Aquele que falava sobre a realidade. Aquele que o qualificava como burocrarazinho intitulado, benevolentemente, de conciliador.


O silêncio era mórbido. Já começava a pensar que não havia sido uma das suas melhores idéias. Enquanto ela relia o conto em voz baixa, ele pensava nas palavras que havia usado naquele conto. Definitivamente tinha que encontrar um sinônimo para “outrora”. Se um desajuizado algum dia tivesse a idéia de compilar seus contos em um só livro, esse livro com certeza se chamaria: Outrora.


Por que procurar outras palavras? “Outrora” dava um sentido lusitano. Meio erudito. Exatamente o que gostaria de passar


Ela havia terminado a leitura. Rira uma ou duas vezes enquanto se deliciava com aquele punhado de bobagens que ali estavam escritas.


- Gostei muito da forma como você me definiu. Disse ela rindo – como sempre.


- Que forma? Desculpe-me se tentei te definir com minhas palavras pobres. Nunca foi minha intenção;


- Não se desculpe. Nunca haviam me chamado de “garota doutro lado das montanhas. De depois das estradas sinuosas, de uma cidade incrustada num vale.” Achei bastante poético.


O silencio fez-se mórbido mais uma vez.


- Só gostou da minha “definição de você”? Perguntou ele com um ar pesado de descontentamento.


- Claro que não. Gostei muito da forma como você se lembrou de mim. Se este conto narra a verdade, você lembrou-se de mim muito rápido


- Não me lembrei de você. Lembrei-me de nós!


- Por favor, não comece! Achei que tudo isso já estava superado. Você esta praticamente casado, e eu estou muito feliz com meu novo amor. Ainda por cima, este conto já tem quase 10 anos. Não é possível que este final ainda reflita alguma realidade.


- Me desculpe, faz anos que eu não leio este conto. O que diz na parte final?


- Beijaria...


- Sim, agora me lembro. Ainda me recordo daquela tarde como se fosse ontem. Você disse que está feliz. Está mais feliz com ele do que foi comigo?


- Por favor, não me faça essa pergunta.


- Você tem medo de buscar a resposta dentro de você mesma?


- Por favor. Pare!


- Qual é o seu problema? Tem medo de admitir que tivemos mais do que “um amor” de verão?


- Não sei bem o que tivemos, mas seja lá o que tenha sido não existe mais...


Foram algumas das palavras mais cortantes que já escutara até então. Poucas vezes experimentara essa sensação de estar totalmente entregue à loucura de outra.
Pela terceira vez fez-se silencio. Dessa vez o silencio era fúnebre.


- Vou embora – disse ela – tenho outras coisas pra fazer.


- Não minta. Quando você mente suas bochechas ficam coradas, e seus lábios ficam secos... Não combina com você!


- Pois bem. Vou me encontrar com meu namorado. Marcamos de almoçar hoje.


- De posse da verdade, posso te pedir que fique?


- Por favor, não me peça isso.


- Por que não?


- Porque há 10 anos eu lhe pedi que não fosse, mas você não me escutou. Então eu abençoei sua ida e rezei para que voltasse. O que nunca aconteceu.


- Tente me entender! Éramos muito jovens. Você morava em outra cidade. Eu era irresponsável, inconseqüente...


- Sim, concordo. Agora somos muito velhos, responsáveis e conseqüentes. Não podemos nos dar ao luxo de nos jogar ao acaso mais uma vez.


Olhou aflita no relógio e viu que já passava de uma da tarde.


- Desculpe, não posso ficar mais. Realmente tenho que ir.


- Mas você volta?


- Não


- Por quê?


- Acho que já discutimos bastante sobre isso...


Ele não tinha mais argumentos. Ela levantou bruscamente da cama, vestiu-se, pegou sua bolsa e saiu pela porta da frente, deixando-o, para sempre.

domingo, 25 de novembro de 2007

Recorte ou recarta

Não havia motivo nenhum para a biblioteca estar fechada. Ou o destino existe mesmo e ainda tranca bibliotecas. Com aqueles dois livros na mão, eu fiquei quase vinte minutos olhando aquela porta que nunca abria. Fiquei olhando, enquanto cerca de duzentas pessoas passavam, me olhavam e riam por eu estar com livros na mão. Riem da literatura, veja você! O fato é que sexta-feira sem passar na biblioteca para pegar livros para o fim de semana não me valia de nada. O que eu faria, sairia para festas? Com treze anos? Nesta cidade? Nesta cidade quase não há festa! Quando há são aquelas comemoraçõezinhas sem qualquer importância. Digo: para mim desimportantes, já que a vida de muita gente depende dessas comemoraçõezinhas. Indiferentemente, crianças e adultos olhavam para mim à espera de que a biblioteca logo se deslacrasse para eu finalmente pegar meus livros. Então surgiu-me a idéia de que dia dois de novembro a biblioteca não funcionaria. Sem qualquer tato para isso, acordei às sete da manhã para aprontar-me ir atrás de meus amigos livros. Na verdade, estava indo atrás de você, Clarisse.
Por que você me surgiu com seu vestido amarelo? Por que seus cabelos negros magneticamente atraíam meus olhos, Clarisse, quando eu apenas treze anos contava e sequer sabia o que era o amor? Se você não tivesse a maldita mania de conversar com qualquer pessoa talvez eu estaria a salvo dessa tortura de quase trinta anos. Metade de meus cabelos brancos que agora surgem são mais seus. Você dançava e cantava pela praça e ainda foi a única a não me olhar estranho. Não como os outros me olhavam. Você me olhava como quem queria meu querer. Mas tudo sem querer alguma coisa. Apesar de todo esse tempo, quase toda madrugada quando o café não me afetou ainda você vem me dizer seu nome sem eu nunca tê-lo te perguntado. "Eu sou a Clarisse, menino do livro". Ah!, por quê você inventa de me torturar? Clarisse, olha, eu nunca acreditei no amor eterno, mas no ódio eterno eu acredito. Eu te odeio, Clarisse. Te odeio por deixar minha vida mais escura.
Sei que você não deverá ler esta carta, quando ela chegar você já deverá ter-se ao encontro daquele velho holandês ruivo. Porém, Clarisse, me diga: se eu te odeio tanto, qual a razão de você estar presente em cada segundo do meu dia? Com que objetivo senão te ver eu iria ainda àquele lugar, àquela praça já cinza, outrora verde? Clarisse, detesto admitir, mas eu te amo, Clarisse. Te amo como se fosse dia dois de novembro. Te amo porque de fato é dois de novembro. Te amo porque há trinta anos você vem deixando você em cada parte do mundo, em cada único segundo e em cada dor. Te amo, Clarisse, porque apesar de não acreditar nisso você é a personificação do próprio amor.


Um toque suave em sua testa, como naquela manhã,
B.M.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Distância



Chovia. Chovia torrencialmente. De fato, não sabia bem o que queria dizer a palavra “torrencialmente”. Ouvira inúmeras vezes naquele boletim do tempo que assistia todas as madrugadas de insônia. Achava que chuva não se classificava como “torrencial”, cúmulos nimbos não passavam de algo acumulado e precipitação não era mais do que alguém que agira sem pensar.

Distantes um do outro conversavam, ainda que sem, sequer, lembrar o timbre de voz que cada um detinha, em suas bocas que mal se abriam:

- Infelizmente não poderemos nos encontrar amanhã. – Disse ele, com ares de desdém.

- Então porque falou que vinha? Não precisava me deixar na expectativa. – Resmungou ela, como quem fingia que se importava.

- ...

- É até bom mesmo que não venha. Não teria tempo de me encontrar com você. Tenho coisas pra fazer.

- Não achei graça...

- Depois de “anos”, você diz que vem me ver, me deixa apreensiva e agora, assim, de última hora desiste? Por Deus, não sou eu a “sem graça”.

Nesse momento a chuva torrencial se transformara numa tempestade. Relâmpagos clareavam o céu revelando uma infinidade de nuvens. Não parecia mais uma chuva de verão. A noite já se delongava mais do que o necessário. Ademais, ainda que fosse se deitar não conseguiria dormir.

Ouviu-se um estrondo. Toda a casa escureceu-se. Uma queda de energia providencial partiu a conversa ao meio. Ele aproveitou para acalmar-se. Acendeu um resto de pito, respirou ar puro na sacada, sentiu as gotas de chuva trazidas pelo vento, tomou um gole de café velho. Rodou mais um pouco pela casa, entrou no próprio quarto, tropeçou em algumas malas feitas pela metade. Surpreendeu-se com a luz que voltara, repentina. Era hora de voltar ao telefone.

- Por que desligou na minha cara? – Atendeu Ela sem, sequer dizer “alô”

- Não desliguei. Fiquei sem energia.

- Por que você não vem mais? – Agora, dizia Ela sem esconder a tristeza que realmente sentia.

- Não sei. Ligaram-me da empresa cancelando a reunião. Não fui eu que atendi. Quando cheguei em casa havia um recado na geladeira: “Amor, ligaram desmarcando a reunião. Disseram que retornariam a ligar marcando nova data...”

Esqueceu-se de mencionar que lera somente o prólogo do recado. Além dos milhões de corações desenhados pela esposa no surrado rascunho, o recado continuava com juras intermináveis de amor eterno. Mais parecia uma folha de caderno de uma colegial, ainda absorta pelo efeito entorpecente de um primeiro amor.

- Entendo. Você está certo. A família vem em primeiro lugar. – Disse, falsamente conformada.

- Se eu mesmo tivesse recebido o recado. Teria arrumado um jeito de continuar com tudo isso. Contaria alguma mentira, ou qualquer coisa do gênero.

- Mentira...

- Juro! Você sabe que...

- Por favor, não comece novas mentiras que não é capaz de sustentar.

- ...

- Parece que não nos vemos há séculos, estou me consumindo de saudade.

- Deve ser por isso que nos damos tão bem. Distância!

- Será esse o segredo?

No mesmo momento, ouviu-se um destrancar de portas. Sua esposa chegava em casa. Apressou-se em desligar.

- Quem era a esta hora? – Perguntou a recém-chegada.

- Ninguém importante...

- Era ela? Sua amante?

- Sim... – Respondeu Ele com certo pudor.

- ...

- Como foi o trabalho?

- Poucos clientes... No fim do mês o movimento cai muito. Eles preferem ficar em casa. Essa chuva também, não ajuda em nada...

Não se ouviu mais nenhuma palavra naquela noite. Cúmplices, deitaram aconchegando-se, cada um no canto que lhe cabia da cama. Tentaram dormir, mas foram impedidos, no final das contas, pelo excesso de café, ou de peso em suas consciências.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Veneno comovente

-E nem se eu te beijasse agora a gente poderia ter certeza que seria a última vez. Mas por agora, é a última vez. A gente tem completa certeza de que não fomos mais que amantes.
-Olha, eu não ach...
-Tenho vinte e um anos e nem mesmo sei se te amei. Nem mesmo sei se era você que eu estava levando para a praia domingo, quem eu pegava na mão. Talvez você tenha sido um prolongamento.
-Agora você me machucou.
-Exatamente como ela me aparecia...sim!, me desculpe, Débora, mas Clarisse me chorava bem mais mansamente. Vem cá, não fica assim não. Ai, também não me bate. Caramba!, não se pode ser sincero nesse mundo. Débora, escuta, olha...eu só estou te dizendo que eu nunca amei você. Mas não estou dizendo que nunca gostei de você e que seu corpo em meu corpo foi um desperdício. Ou que sua língua a percorrer-me foi um exagero de minha parte. Nessa parte eu fui sincero. Eu senti prazer. Só não senti amor.
-Seria bom se você calasse a sua boca, seu maldito!
-Eu quero que você perceba, Débora, que Clarisse está em mim. Deve ser minha penitência terrestre aquela mulher me rondeando o pensamento, o sono e a insônia. Débora, você sabe onde está Clarisse agora?
-... - E ela me matou com aquele olhar. É, nós realmente não seríamos amigos.


Nenhuma meretriz deu-me o corpo de Clarisse. Assim como nenhuma moça de família fazia-me a sala como Clarisse. E nem eu a essa altura saberia dizer se amava Clarisse ou se queria vê-la morta para ver meus problemas resolvidos. Sei que na noite imediatamente posterior à minha discussão com Débora, Clarisse me telefonou envenenando meus ouvidos e oferecendo um ombro para meu pranto. E lá me fui, homem, deitar-me naquele colo, naquele perfume, naquela rosa. Lá me fui. Guardei-me entre suas pétalas selvagens, sua rosa desabrochada. Seu néctar vervente. Meu veneno comovente.
Clarisse me roubou um beijo no meio da noite e me chamou de seu. Aproveitei minha entorpecência e fiz-lhe um poema. Infelizmente não o tenho aqui para mostrá-lo, mas havia um verso que roubei de um chileno que usava boinas - aliás, estava tão ébrio que fiz o poema todo em meu mau espanhol: quiero hacer contigo lo que la primavera hace con los cerezos. Clarisse riu-me de lado, como quem dissesse um gracejo do verso. Clarisse era dura feito pedra. Eu estava disposto a lapidá-la.
Quando levantei-me de sua cama, Clarisse já se tinha ido. Tomei um café mal passado por ela mesma e juntei minhas meias a meus sapatos naquela desordem de amor. Clarisse era fantástica!, deixava seu perfume ao longo de cada passo que eu dava pela casa. Não podia escapar. Clarisse ficou três dias sem voltar à própria casa.Quando regressou, não mais lá estava. Soube por um amigo que acabara de "visitá-la". Clarisse, veja só, não passava de uma puta.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Homônimos e Hormônios

Homônimo adj. + sm. (homo + ônimo) 1 Que, ou palavra que, em relação a outra tem a mesma pronuncia ou pronúncia aproximada, mas escrita diferente. 2 Que, ou pessoa que em relação a outra tem o mesmo nome da outra à qual se faz alusão.

Sábio é o meu dicionário. Consegue definir coisas tão complexas com tamanha precisão. Toque cirúrgico de um papel salpicado de letrinhas que, sem sentido algum, dão sentido a um sem-número de palavras e terminologias complicadas.
Nem tão sábio assim foi o genitor de tais palavras e terminologias complicadas. Formalista, junta palavras e por não mais que uma simples aglutinação (no máximo uma justaposição) transpira outras novas, sem se preocupar com o sentido que tocará a cada um de nós.

Leviano criador não levou em conta as rimas, as entrelinhas, as segundas intenções cordiais.

Quando se diz homônimo não se refere a simplesmente a palavras iguais, ou então a pessoas de mesmo nome. Define-se melhor homônimo como “um eu no nome de outro. Um pouco de mim noutra pessoa.”

Outro dia, num banco de praça qualquer vi escrito: “Lola, te amo”. A primeira coisa que veio à cabeça foi: “Eu também”. Por óbvio eu e o vândalo apaixonado não nos referíamos a mesma pessoa. Tudo culpa desse fenômeno lingüístico tão bem explicado pelo meu sábio dicionário. Tudo culpa dos homônimos. Ou seria dos hormônios? Estúpido genitor de vocábulos. Se queria aglutinar palavras a formar uma nova, que a fizesse de maneira menos racional. Que se chamasse... HORMÔNIMO.

Truques dessa língua que me faz apaixonar de novo e de novo pela mesma pessoa em nome de outras.

Cada Lola que merecer declarações apaixonadas em bancos de praças, em árvores de bosques, em portas de banheiros, em cimentos úmidos, em carteiras escolares... Será sempre a minha Lola. Porque já perdi a conta de quantas vezes escrevi: “Lola, te amo”

domingo, 18 de novembro de 2007

Ódio alexandrino

Homem não ama. Foi exatamente essa a frase que a ouvi dizer antes de fechar o livro que com tanto carinho indiquei. Tamanha falta de tato a dela, por pouco estive por desdizê-la. Segurei-me. Homem não chora também. Mas veja você que depois de dizer aquilo, ela sorriu-me como se fosse maio e apenas o som do violino celebrasse alguma paixão. Veja você!, apesar de toda a crueldade daquela frase, eu a amava. A amava não porque eram castos seus cabelos ou o som de sua voz. Amava-a porque queria cuspir nela o desaforo de amá-la. Repudiei-me por duas noites depois de perceber essa sujismundície de sentimento.
Quando acordei dia sete de setembro, a praça se incendiava em fogos e flashes e gritos. Dei apenas um suspiro. Nada tinha eu de especial ou de diferente daquelas pessoas que comemoravam, ironicamente, independência. Nada tinha eu também que escrever a ela uma carta mal-educada, dizendo que homem sim amava e que eu era a maior prova. Até soneto consegui fazer espontaneamente para ela. Fiz um alexandrino. O lixo gostou bastante daquelas palavras. Eu novamente me via nu e fraco.
Agora já se contavam duas semanas que não a via. E ardia em mim a fome de matá-la. Queria tocar a mão dela desesperadamente e receber de volta o sorriso cru, como se fosse dezembro e o Natal nada fosse. Queria-a ácida. Nada que um bom terno não resolvesse. Fui até a livraria, por conta própria comprei o que o poeta disse, "ferida que dói e não se sente" e com um contentamento todo descontente entreguei a ela, em mãos, cabelos, abraços e beijo. E sim, disse a ela que a amava e que todo aquele tempo nada me foi útil, exceto para abandonar minha vida. Mentira minha, porque havia cinco dias tinha feito a barba, havia quatro tomei café e ainda ontem comprei-me o terno que à hora usava. Ela sorriu. Era má comigo! Convidou-me para entrar - mas já esava bem dentro, com meu corpo sobre o seu.
Passou-se assim até dezenove de outubro, quando me lembrei de perguntar a ela se homem amava. E ela me sorriu, ah, sempre o sorriso! Na verdade, nunca odiei tanto uma mulher como odiei Clarisse.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Não Eu

Do que vale o resto da vida, se no meu casamento ela será a mais bela - mais até do que a própria noiva?
Do que vale o resto da vida, se os livros que eu ainda não escrevi serão dedicados à outra - mas serão pra ela cada uma das linhas que ali estarão escritas?
Do que vale o nada na minha vida, se Dela escuto mil suspiros de amor - mas nenhum deles é por mim.
Para quem daria meu coração senão para aquela que chora por outro e por outros - mas nunca por mim?
A continuar assim, prefiro não continuar. A viver assim, prefiro não viver.
A morrer assim, prefiro nem morrer.