domingo, 30 de março de 2008

Devaneios

Arrumava as malas. Numa inércia um tanto quanto estarrecedora, não pensava em nada senão em seu cúmplice destino. Ia a um lugar frio, a poucas horas de casa e a muitos anos de lembrança.

De malas prontas, não conseguia lembrar bem o que acabara de colocar. Estaria levando tudo que precisaria? Certamente que sim. Estaria, talvez, levando bagagem em sobejo: Suas boas lembranças.

Ia retomando, uma a uma, enquanto as tentava tirar da cabeça. Lembrava-se de quando tudo começou: Uma excursão fadada ao fracasso. Já adulto, sua mãe lhe comprara um pacote de viagem para crianças. Em especial para as recém debutantes. À época sentia-se ainda mais velho. Circunstâncias da vida fizeram-lhe envelhecer de forma anacrônica. Mas a verdade é que ainda era bastante jovem.

Naquele tempo, determinou-se a fazer tudo dar certo. Depois de alguns dias de viagem tentou relaxar e se esquecer dos problemas que fizeram- lhe envelhecer. Assim o fez: foi a uma boate badalada do local. Iniciou bastante tímido, quase como se sentisse vergonha de estar ali. Aos poucos as tensões corporais foram sendo deixadas de lado até que, por sugestão do barman, experimentou uma bebida local, carinhosamente chamada de “Bruja”. Aqui, chamaríamos de “Bruxa”. Simpático nome para uma bebida. Depois do terceiro trago, viu que o nome não era em vão. Mais parecia ter tomado um feitiço, uma poção mágica ou qualquer coisa que o valha. Naquele momento sentiu-se o próprio português decente e recatado de Aloísio de Azevedo que, ao experimentar as “delícias” da baiana, perverteu-se.

Sentindo-se nos seus melhores 16 anos, dançou. Dançou até que os joelhos reclamassem. De nada adiantou, continuou a dançar. Sem perceber como tudo começou, já dançava com uma das recém-debutantes do seu pacote de viagens frustrado. De fato, era linda, e só assim limitava-se a descrevê-la. Em dias últimos, a viagem não duraria muito mais tempo. Passaram todo o tempo que lhes restavam juntos. Parecia que já se conheciam há anos. Besteira! A pequena mal tinha idade suficiente para conhecer alguém “há anos”.

Quando retornaram o mundo real encarregou-se de apartá-los. Mantiveram contato por algum tempo. Mas viram que a vida não era a poesia de outrora e desistiram de lutar contra a distância. Triste fim para uma história tão emocionante.

Ele ainda pensava nela. Todos os dias. Em alguns dias, mais de uma vez.
Deixando de lado suas boas lembranças de lado, voltou a si quando o motorista do taxi informou-lhe que já haviam chegado ao aeroporto.

Tentava não perder-se em pensamentos enquanto fazia o check-in. Era importante que se mantivesse lúcido. Cumpridas as formalidades, tomou um café e recostou-se. Camisa social azul, óculos escuros, sentou-se sobre uma das malas, comprou algo para ler.
Passado alguns minutos, num movimento involuntário ergue o olhar sobre as folhas e avista. Ela entrava no aeroporto, contra o sol, o cabelos negros e brilhantes esvoaçado pela leve brisa que entrava pela porta recém aberta. Ele parou a leitura, levantou-se e retirou os óculos: olha.

Ela não diz nada, corre nos últimos metros que os separam, e pula dando-lhe um abraço infantil. Sussurra no seu ouvido – vá com Deus – dá-lhe um beijo no rosto, vira-se e vai embora. Ele, ainda absorto com a cena que acabara de viver, grita – Aonde você vai? – ela, quase na porta de entrada, agora de saída, responde – Sair do seu sonho, já passa da hora de acordar.

Nesse momento, recobrou a consciência e reparou que acabara de ter mais um de seus devaneios. O alto-falante informava o embarque. Já era hora de ir. Voltar ao lugar frio para, quem sabe, reviver os alguns dos bons momentos do passado.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Sobre vida e crimes.

Meu pai tinha a barba sempre por fazer: não se cansava nem esperava. Ensinou-me sempre através de frases sujas o que eu não deveria ser - mas sou. Meu pai tinha dinheiro, tinha mulheres e tinha um filho de seis anos quando numa esquina, enquanto enchia seu copo de vinho, me disse:

- As mulheres são um crime inafiançável.

Nada pude dizer, nem mesmo discordar ou dar-lhe razão. Primeiro que eu não sabia o que era inafiançável, segundo porque não sabia muitas coisas das mulheres, exceto que elas mijavam sentadas. Ficou o resto do dia sem me dizer nada. Meu pai era do tipo durão.

Quando de noite, antes de dormir ele veio ao meu quarto, lhe perguntei que diabos vinha a ser inafiançável e ele me disse que significava "apaixonante". Não ajudou muito, mas levo isso comigo.

Meu pai morreu quando eu fiz vinte e dois anos. Tinha acabado de conseguir comprar minha casa e pela primeira vez comprei também uma garrafa de vinho verdadeiramente caro para ele. O velho me olhou desconfiado, mas levantou-se e pegou uma taça, dizendo:

-Agora que você é homem, não se importaria se eu não mais me levantasse, não é?

-Pai! - falei, já meio cansado dessas besteiras de velho do meu pai.

-Pois bem, meu filho, é preciso. Agora deixe-me acabar com isso logo, você tem um mundo de
papel para escrever.

Não havia notado até dar nele um abraço, mas meu pai havia deixado a barba crescer. Pela primeira vez, ele havia se cansado.

* * *

Sexta-feira, sete horas da manhã: a cidade está em fúria. O trânsito é um inferno, os jornais são um inferno, viver está subitamente um inferno. O espelho não me mente: tenho trinta e cinco anos e uma barba a fazer. Não faço. Tropeço em mil e uma roupas e revistas enquanto ando pela casa atrás da porta, atrás da minha existência mecânica. Onde estariam aquelas malditas chaves? No meu bolso, é claro! Tudo que se procura encontrado está antes na memória.
O telefone não pára de tocar e não parei para atender, precisava urgentemente tomar café.
Descendo as escadas do prédio, já avisto meus vizinhos me estranharem com os olhos. Desastre que sou, rumo logo para a padaria em busca da salvação venenosa do café. Sem compromisso qualquer, vejo um rosto verdadeiramente triste entrando naquele lugar vazio e barulhento. Vejo, enfim, um crime.

Não era magra, não era gorda, não era feia, não era bonita, não falava alemão, não morava no subúrbio...um crime. Código: Lúcia. Trajava não me lembro o quê - não pensei nunca nela vestida - e falava como se conversar parasse a dor. Me perguntou as horas, o nome, o bairro, as coincidências, evitamos por hora as diferenças, trocamos telefone. Tomei café rapidamente para não interromper o crime inafiançável que estava acontecendo naquele momento. Então eu mais que de pressa inventei pra mim mesmo um compromisso, abaixei os olhos e disse que ligaria.

Saí, comprei um vinho, voltei à antiga casa de meu pai e me sentei novamente com ele, sempre do lado direito, para dizer que finalmente descobri o que era inafiançável, mas minha voz se repetia para mim mesmo, e meu pai não me ouvia, não me ouvia. Não me ouvia. Decidi então acabar com aquele vinho e rumar minha vida. Eu precisava de uma condenação chamada Lúcia.

Precisei de trezes dias para estar pronto, barba feita e tudo no lugar para que eu a convidasse para vir a minha casa. Pela primeira vez, eu esperava.