Com uma xícara de café nas mãos, desponto minha memória para quarenta e dois anos atrás, enquanto tu estás a dormir no quarto ao lado. Ainda hoje conservo em meus olhos o instante de te ver: as minhas mão estrangeiras ao momento sem saber o que tocar, minha boca muda e curiosa por ti e meus olhos num brilho inédito. Esta recordação varre o presente cada vez que tenho para mim a confirmação de tua morte. Bebo o café num ato de autopunição, já que a doença que me corrói o estômago me aproxima de ti, e me guio até a porta de teu quarto.
Sob a rotineira – desde que o câncer te abatera – paisagem de tu a esmorecer na tantas outras vezes cama de amar, me escorre pelo rosto uma lágrima e uma incrível certeza: te amo. Como se de fato te tocasse, acaricio no vento o desenho de teus cabelos sobre o travesseiro. Viro-me e em direção ao piano vou escutando a tua música favorita. Tenho sobre meus ombros o peso de sessenta e seis anos, por isso talvez ande numa vagarosidade imensa. Firo suavemente as teclas, num desespero de te salvar da morte, meu coração se acelera e inevitavelmente sinto o ar fugir de mim.
O relógio – o mesmo desde quando te ouvi dizer que te casarias comigo - completa triunfante a melodia de minha agonia e me chama a atentar para o teu remédio. Novamente vou a teu quarto, mas desta vez entro e apanho o comprimido com um singelo copo de água e te desperto. Tu me sorris, retribuo e me retiro: não sei se ainda vivo.
Retorno à cadeira, completo com café o vazio da xícara e o meu vazio e volto aos prazeres da memória. Reouço tu a dizeres-me pela primeira vez sobre minha soturnice enquanto À beira da cama amarro meus sapatos. Esta cena nuca se repetirá e só agora então tenho a certeza de que as coisas entregues ao tempo se dissipam quando morremos e toda memória é simplesmente intransferível e tu nunca mais advertirás a mim sobre ser triste.
Sob o compasso pianíssimo de minha respiração, volto ao quarto e me deito ao teu lado, imerso na certeza de que o incerto amanhã é inútil: morro feliz.
terça-feira, 5 de fevereiro de 2008
Sentença
por: Borba Magalhães às 12:15
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2 comentários:
Que texto mais lindo!
Estou aplaudindo de pé.
Um abraço,
http://beatrizjuca.blogspot.com/
Não sei o que é mais difícil: viver ou morrer de amor.
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