quinta-feira, 6 de março de 2008

Sobre vida e crimes.

Meu pai tinha a barba sempre por fazer: não se cansava nem esperava. Ensinou-me sempre através de frases sujas o que eu não deveria ser - mas sou. Meu pai tinha dinheiro, tinha mulheres e tinha um filho de seis anos quando numa esquina, enquanto enchia seu copo de vinho, me disse:

- As mulheres são um crime inafiançável.

Nada pude dizer, nem mesmo discordar ou dar-lhe razão. Primeiro que eu não sabia o que era inafiançável, segundo porque não sabia muitas coisas das mulheres, exceto que elas mijavam sentadas. Ficou o resto do dia sem me dizer nada. Meu pai era do tipo durão.

Quando de noite, antes de dormir ele veio ao meu quarto, lhe perguntei que diabos vinha a ser inafiançável e ele me disse que significava "apaixonante". Não ajudou muito, mas levo isso comigo.

Meu pai morreu quando eu fiz vinte e dois anos. Tinha acabado de conseguir comprar minha casa e pela primeira vez comprei também uma garrafa de vinho verdadeiramente caro para ele. O velho me olhou desconfiado, mas levantou-se e pegou uma taça, dizendo:

-Agora que você é homem, não se importaria se eu não mais me levantasse, não é?

-Pai! - falei, já meio cansado dessas besteiras de velho do meu pai.

-Pois bem, meu filho, é preciso. Agora deixe-me acabar com isso logo, você tem um mundo de
papel para escrever.

Não havia notado até dar nele um abraço, mas meu pai havia deixado a barba crescer. Pela primeira vez, ele havia se cansado.

* * *

Sexta-feira, sete horas da manhã: a cidade está em fúria. O trânsito é um inferno, os jornais são um inferno, viver está subitamente um inferno. O espelho não me mente: tenho trinta e cinco anos e uma barba a fazer. Não faço. Tropeço em mil e uma roupas e revistas enquanto ando pela casa atrás da porta, atrás da minha existência mecânica. Onde estariam aquelas malditas chaves? No meu bolso, é claro! Tudo que se procura encontrado está antes na memória.
O telefone não pára de tocar e não parei para atender, precisava urgentemente tomar café.
Descendo as escadas do prédio, já avisto meus vizinhos me estranharem com os olhos. Desastre que sou, rumo logo para a padaria em busca da salvação venenosa do café. Sem compromisso qualquer, vejo um rosto verdadeiramente triste entrando naquele lugar vazio e barulhento. Vejo, enfim, um crime.

Não era magra, não era gorda, não era feia, não era bonita, não falava alemão, não morava no subúrbio...um crime. Código: Lúcia. Trajava não me lembro o quê - não pensei nunca nela vestida - e falava como se conversar parasse a dor. Me perguntou as horas, o nome, o bairro, as coincidências, evitamos por hora as diferenças, trocamos telefone. Tomei café rapidamente para não interromper o crime inafiançável que estava acontecendo naquele momento. Então eu mais que de pressa inventei pra mim mesmo um compromisso, abaixei os olhos e disse que ligaria.

Saí, comprei um vinho, voltei à antiga casa de meu pai e me sentei novamente com ele, sempre do lado direito, para dizer que finalmente descobri o que era inafiançável, mas minha voz se repetia para mim mesmo, e meu pai não me ouvia, não me ouvia. Não me ouvia. Decidi então acabar com aquele vinho e rumar minha vida. Eu precisava de uma condenação chamada Lúcia.

Precisei de trezes dias para estar pronto, barba feita e tudo no lugar para que eu a convidasse para vir a minha casa. Pela primeira vez, eu esperava.

2 comentários:

Ludmilla Lopez disse...

Oie!!
Tudo bem com vc??
Bjo!!

Vita Brevis disse...

Um homem também pode ser um crime inafiançável... a paixão é um crime inafiançável (que adoramos cometer)

Beijos,
Rafa