quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Um início para o fim de tudo

Entregara-se. Acabara de recolocar aquela venda preta nos olhos que lhe obscurecia os pensamentos. Não sabia o que realmente queria. Mas dessa vez não teria como voltar atrás.

- Você tem certeza do que você está fazendo? – Perguntou ela, ainda duvidando que agora fosse verdade.

- Não! Não tenho certeza. Não sei se te quero, mas agora não posso remoer amores passados.

- Então porque faz isso comigo? Não tem medo de me magoar?

- Tenho.

Mal sabia ela que o maior medo que ele sentia era o medo de não se arrepender. Era mártir. Adorava sofrer. Fazia-lhe bem.

- Começos de relacionamentos não deveriam ser melancólicos – murmurou ela, com um ligeiro desespero.

- Tudo deve ser melancólico. “Melancolia é que dá ibope” – Disse ele cantarolando e esbanjando um ar jocoso, como quem não se importava. Importava-se. Tremia e suava frio.

- Pare com isso. Você sabe que eu falo sério. Sou louca por você.

- Eu também falo sério. Não quero te deixar. Nunca mais...

Mal percebia que suas mentiras iam crescendo e que, numa encruzilhada, tomara o caminho errado e a cada segundo, se afastava mais e mais da rota que, realmente, lhe pertencia.

- Você não a esqueceu. Eu sei. Mas eu vou fazer você esquecê-la.

Ele rira por dentro: Como tão tolo comentário ainda podia ser dito? Nascera na década de oitenta. Acreditava em sentimentos que as novelas ainda não reproduziam. Acreditava em amor condicional, em sexo casual, em noites perdidas, em aparências. Acreditava no poder da falsidade, na força das lágrimas e na eficiência da melancolia.

- No que você está pensando? – Perguntou ela com aspecto curioso.

- Nas coisas que eu acabei de deixar para trás.

- Ela?

- Sim.

- Algum dia você vai gostar de mim como você gostou dela?

- Não sei. É possível. “Pode ser que o barco vire... Também pode ser que não” – Ele riu mais uma vez.

- Não sei como você acha graça nisso. Não entendo como ela ainda pode te fazer bem.

- Ela não me faz bem. Ela me faz mal. Mas eu gosto mesmo assim. Desde o tempo em que estávamos juntos.

- Passado...

- Tudo bem. Já não quero mais discutir isso “o imperfeito não participa do (meu) passado”

Ela enfureceu-se. Ruborizou-se e com voz de fogo disse:

- Eu não suporto mais essas músicas. Fale-me alguma coisa sua, fale alguma coisa criada na sua cabeça. Diga-me algo que te pertença...

Ele a olhou no fundo dos olhos, como raras vezes fizera antes e disse:

- Faça por merecer...

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Atestado de...


Então meu caro Borba. Nossas histórias trespassadas doutro lado deste bojador receberam um mimo. Um carinho.
Nada como saber que leitores modernos ainda se importam com os amores perdido, sonhos dilacerados e (dês)coditidianos! Muitissimo obrigado.
Completando a corrente, indico mais 5 blogs que merecem esse novo estampilho:

Subindo no Telhado: Daqui de baixo, leio as coisas que ela escreve. Absorto, meio sem palavras, de janela em janela, procuro seguir tão belos passos.

Brincando com as Palavras: O próprio nome já diz tudo. Brincadeira mais séria que vira textos e poemas inacreditáveis

Diário dos Olhos: “Ah se meus olhos tirassem fotos.” Se tirassem, é nesse blog que elas estariam.

Pequenos Delitos: Sordidez agridoce. Coloca uma pitada de calor na vida de quem lê.

Chaminé de Apartamento: Opiniões abalizadas e pontiagudas sobre o mundo e o cotidiano que nos rodeia

domingo, 23 de dezembro de 2007

Renascença

Pelos pés, pelas mãos, na parede escura - que nunca na verdade foi escura - cada vez mais escura, no breu da sombra do abajur e em seus próprios verdes olhos, antes luz: tudo nela era solidão. Em passos cada vez mais esparsos, distantes de si, se observava ainda uma vida. Se levantava para almoçar, tomar banho, trocar de canal quando o que ela não estava prestando a atenção não prestava, comprava chocolate, comia um pão que mais parecia pedra e ia dormir, sem nenhuma esperança.
O sol saía, teimosamente, e pintava de amarelo-alegria seu quarto preto-tristeza. Quando não era assim despertada, tocava o telefone e uma festa aparecia (ela mesma não aparecia nunca nas festas). Debaixo da porta daquele apartamento novo, de varanda bonita, de vista bonita, de mendigo do outro lado da rua e de gente com o coração bondoso e sorrisos gentis havia cerca de quarenta e oito cartas. Duas delas sem remetente, mas claro que ela sabia quem as enviara e o que nelas continha. Era de seu amigo, mostrando fotos da viagem à Suíça, dizendo que queria ela lá, falando seu belo alemão enquanto não exibia seu pouco e rico francês depois de dizer "nice to meet you" a qualquer pessoa louramente suíça. Enquanto escovava os dentes, sua mente traçava uma lista de palavrões - até neologismos - àquele amigo que é feliz. Ele era feliz sem ela.
Passou dois anos de sua vida esperando, esperando, esperando um jantar no dia doze de fevereiro. Nunca veio. Mas dia dez ele a convidou para tomar um vinho e comer alguma coisa lá pelas oito da noite. Ele tirava alguma coisa do bolso, e ela via praticamente o seu sonho exatamente acontecer.  Entregou a ela uma carta sem nome, como de costume, tocou sua mão, olhou fielmente seus olhos e disse que sentia muito, que não queria que fosse assim, mas era muito necessário. Muito necessário mesmo e nada do que ela dissesse faria tudo o que viveram voltar, todas essas coisas que dizem, essas justificativas em cima de si para amenizar o outro. Seu sonho estava arruinado. Só chorava. Ele cordialmente levantou, foi até o garçom deixando com ele um valor qualquer. E ela se desmanchava.
Três meses depois, aquela carta com letras quase sumidas estava sem resposta. Estava molhada, muito molhada. Não rasgou, não tinha forças, não tinha credo, não tinha motivo. Naquela manhã de doze de maio, exatamente três meses e dois dias depois, as cenas voltaram. Não se repetiram exatamente, mas os flashes voltaram, queimando seu coração. Pegou mais uma vez a carta que nunca saiu do pé de sua cama e ainda sem olhar o papel disse em voz bem alta e chorosa: Camila, eu te amei, mas hoje não amo...que você seja feliz, Miguel. Sabia-a de cor. Olhou suas negras paredes, fechou a cortina imobilizando o sol, foi até a pia, retirou a gilete e matou-se, matando seu amor às cinco horas sem punhal nem Avenida Central.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Amores d’além mar


Acordou pensando ter escutado seu nome, mas era apenas o despertador que lhe chamava para mais um dia naquele lugar estranho. Londres era fria e não tinha sonhos durante a maior parte do ano. Sentia vontade de chorar, mas não fazia seu gênero. Era forte. Nem mesmo sua despedida havia sido melancólica. No fundo, sentia, realmente, vontade de chorar.

Aquele aperto no coração houvera lhe perturbado outrora, tanto que já, até mesmo, havia sido indicado a um cardiologista, mas este, teimava em atestar que era forte como touro.

Sentia falta de lugares d’além mar. Sentia falta daquele cheiro. Sentia fala dos seus sonhos. Sentia falta daqueles cabelos longos em sua cara todas as manhãs. Eram lindas aquelas manhãs. Aquela terra fria não era bem o que sonhara. Quando pequeno sonhava em morar em uma praia cheia de palmeiras verdejantes. Adorava clichês. Com o passar do tempo os sonhos foram se desgastando assim como a idade. Não agüentava mais ouvir falar em sonhos. Deixara tantos para trás que nem mais se importava se ainda tinha algum em sobejo nos confins da alma.

Não somente sonhos deixara para trás. Pessoas também. Morria de vontade de ligar e falar que sentia falta, mas era deveras orgulhoso. Saudade era uma palavra que não falava mais, no máximo dizia um singelo: miss you. Nem de longe tinha o mesmo impacto.

Ainda deitado, perdido em seus próprios pensares, não fazia questão de levantar, não fazia questão de acordar. Perdera toda a noite anterior olhando as estrelas e fazendo contas para descobrir quanto tempo levaria para nadar todo oceano de volta pra casa. Sim, era o que pensava, seria impossível. Quando chegasse, se chegasse, já estaria velho demais até mesmo para se reconhecer no espelho, mais ainda para reconhece-la. Depois de tanto tempo nem a voz adocicada, que no passado o conquistara, seria a mesma.

O telefone tocou. Nunca lhe chamavam. Podia ser ela. O que diria? O que conversariam? O telefone tocou mais uma vez. Como ela estaria? Estaria com alguém? Mais um toque. Estariam realmente felizes? ... Fez-se um silencio mórbido. O pior que já escutara. O telefone não tocava mais. Caiu-lhe uma lágrima perdida. Outro dia começava. Será melhor assim – pensou. Levantando-se, não percebeu, mas deixara mais um sonho para trás, talvez, não só um sonho, mas deles, o último.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Multiplex

Não gostava de aquários nem de shopping centers. Edu, que morava no quarto ao lado do seu, quase porta-com-porta, tinha um aquário enorme, lotado de peixinhos de todas as cores, e perdia horas do seu dia cuidando, limpando, conversando com os peixes. Peixes estes que, tinha CERTEZA, odiavam ficar ali, presos, olhando aquele homem idiota fazendo barulhos que eles não entendiam. Pra completar, Edu trabalhava no cinema do shopping. "Multiplex", dizia com voz de horror.

Eram três portas, mas Lucia, dona da terceira, saía mais cedo e chegava mais tarde do que eles podiam compreender. E, naquela manhã, do alto de seu apartamento no segundo andar, Mariana ouvia os carros passando como que dentro da sua sala, e aumentava um pouco mais a tv. Edu chegou, pediu que ela abaixasse o volume e foi pro quarto cuidar dos peixes.

Se sentia sozinha demais naquele apartamento onde viviam três pessoas. Não tinha com quem conversar, não tinha pra onde ir. Tinha medo do escuro e de quando as janelas batiam em noites de temporal. Tinha nervoso de portas entreabertas e de torneiras pingando, de pessoas que andavam só de meias e de pessoas que dormiam de barriga para cima. Sabia que o problema não era a sempre ausente Lucia, ou os peixes, ou o aquário, ou o maldito multiplex.

O problema era ele, com seus peixes, sua barriga pra cima, suas meias encardidas, seu curso de francês e as palavras em francês no meio das conversas, o jeito como ele gesticulava e como olhava e como mexia a boca quando jantavam juntos e como amarrava os sapatos segurando os cadarços de uma maneira que só ele sabia... o problema era ele.
E se...? Um calor percorreu seu corpo. Sentiu toda a coragem do mundo sob seus pés, como que a levantando. Foi como se estivesse voltando de Oz: via tudo diferente agora, de repente, sem a ajuda de ninguém. Calçou suas havaianas lilás e já ia andando em direção à porta ao lado quando a campainha tocou.

- Oiiia! Mwaah! Mwaah! E aía?*

Era Lílian, a loira, a de saltos, a de lábios grossos e cintura fina. Lílian que fazia faculdade de moda e assistia a programas de moda e lia revistas de moda e trabalhava como gerente de uma loja *da moda* no shopping e ai, como ele pode gostar dela, como? Abriu a porta, dois beijinhos. Vontade de colocar o pé na frente pra Lílian tropeçar, ver se o penteado se desfazia, se a maquiagem borrava. Lílian, que acordava pronta pra um comercial de margarina.

Sentou no sofá e aumentou a tv, tentando ensurdecer seus pensamentos

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Despedida

Há dois anos, não chovia assim. Há dois anos, eu não andava cinza. Há dois anos eu fazia a barba, me penteava, saía as ruas cheio de esperança. Há dois anos que Clarisse se foi.
Aquela garotinha que vi crescer, que conheci as lagrimas, os risos, os desejos, os medos. A mulher que amei. A única mulher que amei. O sorriso de Clarisse não volta mais. Os telefonemas, as cartas, o cheio, o gosto, os desgostos que ela me causava. Clarisse morreu e isso não me cabe.
Não chorei ou sorri ou lamentei ou ignorei. Clarisse continua existindo inexoravelmente toda noite. E continua existindo em cada banco da pracinha, na solidão da madrugada, nas paredes das casas, no chão da rua e até nas bostas dos cavalos. Não há algo que não me traga Clarisse. E não há nada que me trará Clarisse.
Clarisse morreu. E então as pessoas viram o absurdo que sou. Comecei a me embriagar, a chorar em qualquer canto, a quase agredir quem se aproximava. Perguntava por seu nome em cada esquina, em cada ruína, em cada lugar que eu passava. Eu era um lixo. Ninguém sabia me responder do paradeiro de Clarisse. Mas ela estava no meu coração.
Ontem, pela manhã, quando fui escrever uma carta a um amigo, deparei-me com uma carta de Clarisse. Aquelas letras calmas no papel, talvez até cínicas. Aquelas letras que pareciam tanto com as minhas...Sentei-me e redigi a meu amigo notícias sobre mim depois de Clarisse. Mesmo longe, Bento foi a única pessoa em quem confiei durante toda a minha vida. Contava a ele agora sobre minha dor de existir longe de Carisse. A carta dela sobre a mesa pedia para ser relida. E reli. E abismei-me. Fui atrás de outras e outras cartas. Todas da mesma forma. Não compreendi - não quis compreender - o que me acontecia. Aquelas letras calmas no papel, talvez até cínicas, assinadas por Clarisse, eram minhas! Clarisse, a mulher que amei, com quem convivi, conversei, beijei, odiei não tinha endereço. Não tinha registro civil. Não tinha sequer sobrenome. Clarisse nunca existiu além de em meu coração.
Depois de ver esses trinta e seis anos desperdiçados, só resta a mim o fim que todos os meus companheiros vivos terão: morrer.

E é com despreparo e desamparo que deixo a vida, mas "veritas vincit" e eu não a suportei,

Bento Mathias de Magalhães Dutra.


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Esta história sem rumo é a história de meu tio, Bento de Magalhães, homem distinto, mas desde muito cedo louco. Tomei a liberdade de publicá-la neste espaço porque a loucura misturada à paixão sustenta as emoções humanas. Eu, Borba Magalhães, não sou poeta. Sou um contista dos piores que apenas a partir desta data trará a este lugar histórias que nasceram de mim.