quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Despedida

Há dois anos, não chovia assim. Há dois anos, eu não andava cinza. Há dois anos eu fazia a barba, me penteava, saía as ruas cheio de esperança. Há dois anos que Clarisse se foi.
Aquela garotinha que vi crescer, que conheci as lagrimas, os risos, os desejos, os medos. A mulher que amei. A única mulher que amei. O sorriso de Clarisse não volta mais. Os telefonemas, as cartas, o cheio, o gosto, os desgostos que ela me causava. Clarisse morreu e isso não me cabe.
Não chorei ou sorri ou lamentei ou ignorei. Clarisse continua existindo inexoravelmente toda noite. E continua existindo em cada banco da pracinha, na solidão da madrugada, nas paredes das casas, no chão da rua e até nas bostas dos cavalos. Não há algo que não me traga Clarisse. E não há nada que me trará Clarisse.
Clarisse morreu. E então as pessoas viram o absurdo que sou. Comecei a me embriagar, a chorar em qualquer canto, a quase agredir quem se aproximava. Perguntava por seu nome em cada esquina, em cada ruína, em cada lugar que eu passava. Eu era um lixo. Ninguém sabia me responder do paradeiro de Clarisse. Mas ela estava no meu coração.
Ontem, pela manhã, quando fui escrever uma carta a um amigo, deparei-me com uma carta de Clarisse. Aquelas letras calmas no papel, talvez até cínicas. Aquelas letras que pareciam tanto com as minhas...Sentei-me e redigi a meu amigo notícias sobre mim depois de Clarisse. Mesmo longe, Bento foi a única pessoa em quem confiei durante toda a minha vida. Contava a ele agora sobre minha dor de existir longe de Carisse. A carta dela sobre a mesa pedia para ser relida. E reli. E abismei-me. Fui atrás de outras e outras cartas. Todas da mesma forma. Não compreendi - não quis compreender - o que me acontecia. Aquelas letras calmas no papel, talvez até cínicas, assinadas por Clarisse, eram minhas! Clarisse, a mulher que amei, com quem convivi, conversei, beijei, odiei não tinha endereço. Não tinha registro civil. Não tinha sequer sobrenome. Clarisse nunca existiu além de em meu coração.
Depois de ver esses trinta e seis anos desperdiçados, só resta a mim o fim que todos os meus companheiros vivos terão: morrer.

E é com despreparo e desamparo que deixo a vida, mas "veritas vincit" e eu não a suportei,

Bento Mathias de Magalhães Dutra.


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Esta história sem rumo é a história de meu tio, Bento de Magalhães, homem distinto, mas desde muito cedo louco. Tomei a liberdade de publicá-la neste espaço porque a loucura misturada à paixão sustenta as emoções humanas. Eu, Borba Magalhães, não sou poeta. Sou um contista dos piores que apenas a partir desta data trará a este lugar histórias que nasceram de mim.

Um comentário:

Vita Brevis disse...

Estou impressionada!

Sabia desde sempre que essa história com Clarisse só poderia ser real... mas não imaginava quem estava por trás dela!

Sensacional!

Beijos,
Rafaela