domingo, 23 de dezembro de 2007

Renascença

Pelos pés, pelas mãos, na parede escura - que nunca na verdade foi escura - cada vez mais escura, no breu da sombra do abajur e em seus próprios verdes olhos, antes luz: tudo nela era solidão. Em passos cada vez mais esparsos, distantes de si, se observava ainda uma vida. Se levantava para almoçar, tomar banho, trocar de canal quando o que ela não estava prestando a atenção não prestava, comprava chocolate, comia um pão que mais parecia pedra e ia dormir, sem nenhuma esperança.
O sol saía, teimosamente, e pintava de amarelo-alegria seu quarto preto-tristeza. Quando não era assim despertada, tocava o telefone e uma festa aparecia (ela mesma não aparecia nunca nas festas). Debaixo da porta daquele apartamento novo, de varanda bonita, de vista bonita, de mendigo do outro lado da rua e de gente com o coração bondoso e sorrisos gentis havia cerca de quarenta e oito cartas. Duas delas sem remetente, mas claro que ela sabia quem as enviara e o que nelas continha. Era de seu amigo, mostrando fotos da viagem à Suíça, dizendo que queria ela lá, falando seu belo alemão enquanto não exibia seu pouco e rico francês depois de dizer "nice to meet you" a qualquer pessoa louramente suíça. Enquanto escovava os dentes, sua mente traçava uma lista de palavrões - até neologismos - àquele amigo que é feliz. Ele era feliz sem ela.
Passou dois anos de sua vida esperando, esperando, esperando um jantar no dia doze de fevereiro. Nunca veio. Mas dia dez ele a convidou para tomar um vinho e comer alguma coisa lá pelas oito da noite. Ele tirava alguma coisa do bolso, e ela via praticamente o seu sonho exatamente acontecer.  Entregou a ela uma carta sem nome, como de costume, tocou sua mão, olhou fielmente seus olhos e disse que sentia muito, que não queria que fosse assim, mas era muito necessário. Muito necessário mesmo e nada do que ela dissesse faria tudo o que viveram voltar, todas essas coisas que dizem, essas justificativas em cima de si para amenizar o outro. Seu sonho estava arruinado. Só chorava. Ele cordialmente levantou, foi até o garçom deixando com ele um valor qualquer. E ela se desmanchava.
Três meses depois, aquela carta com letras quase sumidas estava sem resposta. Estava molhada, muito molhada. Não rasgou, não tinha forças, não tinha credo, não tinha motivo. Naquela manhã de doze de maio, exatamente três meses e dois dias depois, as cenas voltaram. Não se repetiram exatamente, mas os flashes voltaram, queimando seu coração. Pegou mais uma vez a carta que nunca saiu do pé de sua cama e ainda sem olhar o papel disse em voz bem alta e chorosa: Camila, eu te amei, mas hoje não amo...que você seja feliz, Miguel. Sabia-a de cor. Olhou suas negras paredes, fechou a cortina imobilizando o sol, foi até a pia, retirou a gilete e matou-se, matando seu amor às cinco horas sem punhal nem Avenida Central.

3 comentários:

Johnn. disse...

impactante.



tem um presente para vocês dois no meu blog

Sentimentalidades-Todas disse...

E fui trazida aqui por blogueiros distantes.
Depois de ler alguns post´s, resolvir manifestar minha existência na blogesfera....
Parabéns pelos textos enigmáticos....

Estarei linkando para facilitar as visitas!

abraços!

A Jana e o Ti disse...

Que triste, Borba!
Oi, retribuindo a visita. Seja bem-vindo ao Por que Cargas...
Um feliz 2008!