segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Ensaio prático sobre ser só

Quando o convidaram ao teatro, deveriam saber que pouco se importa com atores e suas interpretações de textos que melhores aproveitados seriam caso transformados irremediavelmente em livros. Ainda assim, mesmo com toda aquela úlcera e olhos tristemente cansados, ergueu seu corpo em direção ao guarda-roupas e festivamente apanhou dentre a monocromaticidade um raro exemplar de camiseta branca. O calor desgraçado a que já se reacostumara desde que retornou de Milão só lhe servia para escolher modelos horrendos que, se não lhe fosse a necessidade, negaria usá-los veementemente. Dirigiu-se, completamente nu, ao banheiro, encarou o próprio rosto e se viu obrigado a encarar a navalha para tirar aquele ridículo bigode que cultivava de seus idos tempos – ou amores - italianos. Quase que automaticamente, cantarolava “O barbeiro de Sevilha”. Quase que maquinalmente, deflorou três linhas de sangue, rios que fluíam e se perdiam gotejantes na pia branca. Após o banho, vestiu a desconfortável mas necessária roupa e foi para o local combinado.
O teatro – talvez um codinome para exibicionismo arquitetônico – recebia todos os estilos de arte que houveram, haviam e, nas mentes fantasiosas de artistas, haverão de existir. Quando após dezenove minutos não avistou nenhum conhecido e viu as últimas gentes adentrarem o lugar, lembrou-se: esqueceram-me! Suavemente, levantou uma sobrancelha, tocou o próprio queixo e foi andando ao longo de sete quilômetros que urgentemente se mostravam para o homem. Faltando quatro quilômetros para o fim do percurso, tropeçou numa pedra infortúnea, a quem chutou pelo resto do caminho. Esse era o seu favorito exercício de solidão. Vinte e três minutos faltavam para o fim previsto da peça e vinte e três minutos levou até que abandonasse num disparo solitário a pedra solitária que lhe fez companhia em sua solidão.

Aquele ato covarde de chutar uma pedra trouxe-lhe À memória Beatrice, trouxe-lhe Caruzo e seus uísques, trouxe-lhe a si mesmo noutros tempos. Lembrou-se inutilmente de que havia se transformado num homem amargo por causa de lábios incrivelmente doces que lhe foram arrancados pela impaciência da morte – mesmo ele gritando “leva-me a mim!, leva-me a mim, desgraçada!”. Todos morrem menos a morte. Pensou em destruir a morte tentando assim reconstruir-se. Meros devaneios solitários, nem mesmo aquela pedra tão sozinha no mundo demonstrou compaixão nesse momento. Bastou sussurrar no vento como se no ouvido dela na hora intimamente carnal e amorosa “Beatrice” para que a pedra parasse. Aquela lembrança, não. Beatrice tinha os olhos verdes e tentava o português com doce sotaque. Beatrice estudava as leis e conhecia o Brasil. Beatrice conhecia a história da Europa, já morou na África. Beatrice tinha os olhos verdes. Verdes. O homem, tal qual a pedra, parou-se. Deixou a lágrima fluir feito horas antes os rios de sangue e percebeu as primeiras gentes saírem do grande teatro. Desesperado, chutou forte a pedra.
Encontrou seus quatro conhecidos e fingiu um riso qualquer. “A pedra, talvez, foi amiga”, pensou anos depois ao entrar pela primeira vez em vinte anos num teatro.

Um comentário:

Márcia disse...

Putz, saudade é pedra que vive no meio do caminho, não adianta chutá-la, nem ignorá-la...leva tempo, vinte ou mais anos para que se possa sorrir forçado e aplaudir uma peça teatral, mas com certeza, não se morre de saudade :-(
dias lindos
beijos