segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Homem

Atravessando a rua, talvez num ato de soberba, confundi às faixas todos os outros. Parei. Toquei-me a face. Mexi minha outra mão. Senti os ossos, os lábios. Não senti a palavra, não senti de minha mão o carinho, nem senti de meu rosto o espanto. Senti-me vivo, animal, irracionalmente homem.

Um carro se aproxima, freia, diz palavrão. Eu ainda vagante, descobridor de mim, apenas choro. Continuo absorto minha caminhada. Pela calçada, dezenas de corações, pensamentos, idéias, dúvidas me passam ao lado, esbarram - alguns xingam. E passam acompanhadas a isso pessoas. Cidadãos que têm olhos, lábios, orelhas, alguns colhões, alguns óculos, aguns ternos. Animais levemente racionais que trilham seu percurso sem se importar com a flor a morrer na árvore ou a nuvem a migrar. E eu existindo, no meio de tudo isso.

De repente, o mesmo animal que caminhava, agora pára. Feito máquina ergue o pulso direito, maquinalmente também compreende a linguagem dos ponteiros e se espanta (gesto facial que a face não possui, está cedido eternamente ao momento). Entra no prédio. Cumprimenta alguém - que passa e existe mas talvez não tenha percebido - e entra no elevador. O espelho é um confronto. Aquela pupila direita esquerdamente lhe encarando e aqueles cabelos grisalhos suavizando o que é amedrontam-no. Ele é matéria! Destrinchando cada célula, cada átomo, partícula inquebrantável que haja em si, despede-se daquele abismo refletido e avista a porta de seu apartamento.

Eu toco a porta, ela não é viva, não chora ou ri, mas tenho nesta porta a lembrança da carne que me dissolveu e nesta carne a certeza infundável do amor. Distante, abro a porta e um cheiro vem. O costumeiro aroma e a doce voz temperando o clima de meu lar são intocáveis. são indestrutíveis no átimo em que acontecem. Uma mulher já não tão loira com olhos que eram antes o Tejo me sorri. Vivo agora a emoção de dezessete anos antes, quando pela primeira vez cheguei do jornal à casa minha, e ela na mesma posição estava. Mudou-se o sofá, a tinta, o piso, a cor dos cabelos, do sorriso, do avental, mas o gesto é momoravelmente o mesmo. Abraço-a, respondendo a um singelo sim à sutil pergunta medrosa sobre se estou bem. Me beija, beijo-a. Ao relento de bons tempos, a cama abriga amantes velhos como se hoje descobridores da essência do prazer. Saio dela para estar mais profundamente e humildemente nela. Balbucio meu amor, acendo o abajur e inicio isto. Existo, irremediavelmente (seria a morte um remédio?) existo.

8 comentários:

Natália Nunes disse...

Caramba! Até senti vertigem ao ler esse texto! Não conto porquê, segredo.


Mas, uma crítica: mulheres não usam mais avental, não as de hoje em dia.


Abraço!

Johnn. disse...

Esse relato dessa experiência é lindo.

Lembrou-me um poema de Ferreira Gullar chamado "tato".

B!ah♥=D disse...

Puxa...Que lindo...Acho q vc descreve muito bem,sabe,quando leio seus posts parece que estou la no local,vendo tudo o q está acontecendo...Parabéns...
Bjos;
=D

Tanmires Morais disse...

Adorei seu post!!

'Existo, irremediavelmente.'

faz pensar que já que existimos, devemos dá sentido à nossa vida...

bjo =**

Déborah Capel disse...

E é tão lindo quando em histórias como essa o amor continua o mesmo apesar do tempo passar.
Gosto muito daqui e espero que continue sempre passando lá pelo Strange Words.
;*

Vita Brevis disse...

"Amantes velhos como se hoje descobridores da essência do prazer"

Deu vontade de ter uma sensação parecida...

Beijos,
Rafa

Sentimentalidades-Todas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Ahhh meu favorito do Borba!
=D