quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Sombra

Entrou no carro disposta a acabar com tudo. Já não suportava mais aquilo. Tomou coragem, puxou fôlego como a muito não se via puxar, olhou para o pára-brisa um pouco molhado da garoa comum nas tardes setembro e girou a chave. O carro fazia barulho, imóvel, como se quisesse dizer alguma coisa. No banco havia cartas, cartões, fotografias, chocolates e tudo mais que viveram juntos.

Não haviam combinado nada. Pretendia pegá-lo de surpresa, de preferência, em algum momento constrangedor. Atirou-se estrada afora. Não era longe. Alguns quilômetros depois já estaria na casa dele. Ensaiara durante dias o que iria dizer naquele momento. Havia decorado não mais que trinta palavras. Seria curta. Sabia que se se embestasse a falar, seria mais uma vez convencida.

Ainda era nova. Sequer começava a apresentar os sinais do tempo, geralmente tão cruel entre as mulheres. Dividia seu tempo entre seu trabalho e a pós-graduação que há pouco começara a fazer (menos por vontade própria, mais por insistência da mãe). Arrumara um ou outro namorado durante a vida. Mas não conseguiu gostar de ninguém como gostava dele.

Ele era bem sucedido, meia idade – até mesmo já havia comprado um carro importado -, casado, dois filhos – para ser mais exato: duas filhas. Duas lindas princesas com nomes bíblicos e qualquer coisa entre doze e catorze anos.

Atirou-se no trânsito. Velocidade moderada, música alta e muitas idéias na cabeça. No caminho não continha as lágrimas (não fazia questão alguma de contê-las). Meia hora depois, lá estava – A casa dele. Uma casa enorme, num bairro chique, afastado dos barulhos do centro e do mundo real.

Fitou a porta por longos quarenta minutos. Pareceu uma eternidade. Não viu nenhuma movimentação em casa. O avançar da hora também não ajudava. Já deviam estar dormindo – pensou enquanto respirava como se o ar fosse acabar em minutos. Decidiu que entraria, mesmo assim. Não teria tanta coragem assim outra vez.

Deixou os devaneios de lado e entrou utilizando-se de uma cópia da chave que havia ganhado há tempos, para que entrasse sorrateiramente enquanto a pobre esposa não estivesse.

Pé ante pé, o coração batia coladinho a sua garganta. Úmida de chuva, ainda deixava suas pegadas nas primeiras salas da casa. Algumas luzes ainda acesas, o que indicava que havia alguém em casa. Aprofundando-se um pouco mais, como aquela arqueóloga que andava pela primeira vez uma caverna nunca visitada, encontrou uma televisão ligada.
Neste mesmo instante, deparou-se com ele voltando da cozinha com um copo de whisky numa mão salgadinhos noutra e um sorriso surpreso:

- O que você está fazendo aqui? – Disse ele com uma calma incomum, enquanto degustava sua bebida.

- Preciso terminar tudo. Nosso caso não está certo!

- Tudo bem... – Balbuciou enquanto dirigia-se ao sofá para assistir o programa recém voltado dos comerciais.

- Onde está sua família?

- Viajaram. Foram passar o fim de semana na fazenda.

- E por que você ficou?

- Tive reunião na firma. Acabei de chagar, não dá pra perceber?

De fato dava. Ainda vestia o terno e a gravata parecia que fora modestamente afrouxada a pouco.

- Bom. Mas é isso que eu queria te dizer. Não podemos continuar nos vendo.

- Você sempre diz isso. – Resmungou ele, enquanto se entretinha com os indicadores financeiros do jornal da noite.

- Dessa vez é verdade. Preciso de alguma coisa real na minha vida. Não posso ficar me escondendo pelos cantos. Ser só a outra não me basta mais. – Balbuciou de forma ríspida, já sem conseguir conter as lágrimas.

Manteve-se um silencio.

- Você não está acreditando, não é? Pois bem. Aqui estão suas chaves. Não as quero mais. Boa noite.

- Fique mais. Tome um whisky. Não está com fome?

- ...

Ela ficou parada, estarrecida com tamanha indiferença.

- Tudo bem, já estou com sono. Vou me deitar. Quando acabar de assistir a TV, desligue-a e me encontre no quarto. Estou te esperando.

Deu-lhe um beijo no canto da boca e saiu em direção ao quarto.

Ele não esperava tal reação, mas na manhã seguinte ao levantar deparou-se com a TV ainda ligada e um singelo recado debaixo do molho de chaves que dizia: Dessa vez é verdade. Seja feliz, pois eu serei.

6 comentários:

Alice disse...

Olá !! adorei sua visita no pais do pensamento e vim te conhecer tb !! ... estou encantada com suas palavras , vc ´´e escritor de verdade !!
posso add aos meus pensadores favoritos ??
abraços

Anônimo disse...

muito lindo o post *__*

Vita Brevis disse...

Já passei por momentos assim... na maioria deles me rendi, vi um pouco de TV e depois fui me deitar no quarto com ele.
Felizmente da última consegui desejar que ele fosse feliz, pois eu seria também. E, de fato, hoje sou!

Como sempre, um lindo post!
Beijos,
Rafaela

Sentimentalidades-Todas disse...

Querido Lamar....

A vida louca e real anda me consumindo o tempo. Volto a postar por esses dias. A mente ainda ferve por aqui.

Fico lisonjeada por sentires falta dos meus ditos e desatinos.

Quando estiver com a leitura atualizada no Fingidouro, falo sobre as inquietações que este espaço sempre me provaca....

Abraços!!!!!!

Deborah disse...

adorei.

quando comecei a ler pensei que ela fosse se matar, mas isso seria óbvio demais.

beijo!

Sentimentalidades-Todas disse...

leitura atualizada....
vejo que entrastes nas fase do wishky...

Sustentar verdades ou mentiras definitivas, é mesmo difícil, mesmo quando o alvo é a dita felicidade...

saudades do seu lugar!